sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O voo de Ana Cristina César



A querida amiga e atriz Dai Fiorati tinha me convidado, certa vez, para acompanhá-la ao Instituto Moreira Salles, durante o seu processo de pesquisa sobre a escritora Ana Cristina César, destinado a um espetáculo experimental e intimista que ela estava montando, e que acompanhei como admirador e consultor. 

Ana Cristina César é um dos ícones da literatura-revolucionária-feminina-brasileira, em especial do gênero carioca. Poeta de alta grandeza, realizou um precoce voo, em determinado momento da vida, pela janela do apartamento em Copacabana, que causou a queda da sua existência mas elevou sua imortalidade. 

Hoje o Instituto detém quase todo acervo da escritora, doado pela família, principalmente as cartas que ela escreveu e nunca mandou para alguns amigos ou para si mesma. Entre elas, sua carta de despedida, momentos antes da morte (que copiei lá e transcrevi aqui ao final). Foi uma experiência reveladora tocar numa das últimas coisas que ela tocou ao se despedir.  

Mas a grande ironia do destino, de certo modo, era saber que aquele belo casarão de arquitetura moderna, onde viveu a família Moreira Salles, antes de se tornar uma referência de cultura e pesquisa, foi também palco dos últimos dias de uma das esposas suicidas do ex-proprietário, Walther Moreira Salles. 

Impregnados pela poética imparcial e visceral de Ana C., eu e Dai resolvemos, ao final, tomar um café no pátio externo do Instituto. Eis que uma misteriosa visitante apareceu, pousando na murada que cercava o lago, diante de nós. 

Tão sutil quanto desconfiada, a ave, de brancura infinda, pescoço longuíneo, corpo magro, pernas alongadas, descansou minutos de sua viagem desconhecida, fingindo ignorar os meus curiosos olhares. 

Com passos quase sagrados, começou a caminhar sobre as águas, respeitando as carpas que fugiam assustadas, até se esconder nas folhagens de plumas verdes dos arbustos ao redor. 

Embora sua indiferença gritasse, ela parecia ter hora e lugar: aguardava o alimentador de peixes, que chegaria em seguida, de mansinho, atirando ração aos cardumes que se agitavam num festival de cores famintas. 

Ela, então, com a delicadeza dos caçadores, mergulhou o esguio pescoço na profundeza rasa, logo emergindo com um pequeno peixe preso no bico, debatendo-se pela vida. E o engoliu num só solavanco. Depois, outro. E outros. Muitos peixes. Todos virando comida enquanto se distraiam comendo.

Até que, por fim, cheia de graça e desengonçada, com uma aparente saciedade, ela debateu as asas brancas e alçou voo, desaparecendo nas alturas, como se abraçasse o céu.

Um anjo predador que por ali passou.

Dai em cena com a peça inspirada em Ana Cristina César, 
com direção de Dora Bellavinha e Lucas Casttelo.

Armando,

Passei esta noite de sexta feira escrevendo a continuação de “Aventura na Casa Atacarraca” (história fantástica à moda de Poe), pensando que Homero gira e me chama de “filhinha” (recuo em sobressalto) e versificando seu poema “Na beira, copm os olhos abertos”, como uma louca a compor quebra-cabeças de mil peças. Não são mil, mas reparto outra vez a resistência dos breves effes; de trezentos mil, parece, fizeram uma torre bem alta em Paris, e não era de marfim, mas puro ferro. Por obra sua escapei de me lançar do alto dela, mas no teu poema belo esse excesso contraditoriamente, acredito, anuncia uma renúncia. Nos próximos, outros effes serão cortados, como num fla-flu final de campeonato, serão cortados assim definitivamente, voos supérfluos em direção ao chão. Mas eu te dizia... Estou sujíssima. Não sei como poderei pegar no sono. 
A literatura me perturba. Uma caixa cheia de cartões postais me perturba. A renúncia me perturba. Até uma caixa dágua, um otorrino gauche, um índice onosmático. Tomo tudo na veia. Os calcanhares (de Aquiles ou Mercúrio?) me pinicam. Os objetos me olham histericamente. Até que mais à noite a atenção... Ora vá tomar banho, você diria da sua gaiola das loucas (ainda são 4?). A beira, a borda, o quase, a renúncia – é por aí mesmo – ou melhor, certa renúncia: você sabe muito bem, mas como eu, que agora, por sua causa, coloca vírgulas e trocadilhos no lugar, após.. no papel. 
Às vezes entra em surto de ignorância (aquela que a psicanálise cura) e se atraca como um navio numa estaca: já viu um paquete amarrado numa estaca? Despropósito! Releia a Ode Marítima depressa e vá ver o Lacan. 

Ps.: Antes que eu assine, ter sentido o mesmo medo que te assola, que nunca me contaste e que eu, como tonta, declaro ter adivinhado ou inventado, o que dá na mesma para nós, cartomantes dos poetas: o de que qualquer Lacan roube de mim. Ou te roube um verbo , ou ter cure a cegueira encantadora... 

Pronto, confessei. Mary saberia: não rouba não, Armando! É só impressão (nos 2 sentidos). 

Beijo, Ana C.