terça-feira, 16 de setembro de 2014

Aquilo que o tempo não leva



Na adolescência gostava de manter correspondências. Algumas feitas à mão, com letra de colegial dedicado que perdi aos poucos. Outras datilografadas na máquina de escrever que meus pais haviam me dado.

Só quem conheceu as antigas cartas sabe que elas possuem um aspecto romântico, de segredo velado, sentimento enviado, mistério selado. Aquilo que alguém mandava, o carteiro entregava, a gente lia e o tempo guardava. 

Podiam ficar mofadas e amareladas, entulhadas nos fundos das gavetas ou arrumadas dentro das caixas, mas duravam a eternidade do momento. 

Era o mais barato e eficaz recurso para se comunicar com alguém, principalmente à distância, naqueles fins dos 80 e despontar dos 90, antevendo a explosão da informática. Além do telefone e do telegrama - que muitos nem deve suspeitar o que é.

Pouco sociável, naquela complicada transição de menino para rapaz, eu vivia cercado pelos livros e trancafiado no meu quarto, de onde só saía para estudar de manhã ou fazer algo na rua à tarde. Nunca era convidado para as festinhas da turma nos fins de semana. E sendo menor não tinha vida noturna.

Então, além dos livros, as cartas eram minhas companhias, justamente por unirem as duas coisas que eu mais amava: ler e escrever. E ainda me proporcionavam ir adiante sem sair do lugar, conhecendo gente e trocando ideias.

Se os livros eram fiéis e permaneciam ao meu lado, as cartas se atreviam a criar asas e sumir pela vida, flanando lá fora, soltas ao léu, às vezes trazendo respostas que aceleravam meu coração.

Tudo havia começado quando descobri um daqueles classificados de amizade que vinham impressos nas revistas, algo bem comum na época. Pessoas que queriam fazer contatos devido algum tema específico, gostar de alguém famoso ou por colecionarem algo. Outras apenas por pura solidão. Encontrei o pessoal fixado por livros e não titubeei, selecionando os mais interessantes e lhes escrevendo. 

Não é que me responderam? E iniciou-se assim uma troca de comunicação que deu novo sentido para meus dias. Depois do almoço, ao voltar da aula, esperava o carteiro aparecer na calçada, enquanto lia deitado numa rede na varanda, ou parava o que estivesse fazendo ao ouvi-lo bater palmas no portão. 

Um simples pedaço de papel carimbado passou a me representar um passaporte para o infinito. E sem limites, mesmo dentro de toda aquela limitação.

O ritual se consistia em virar a noite escrevendo-as, depois colocá-las dentro dos envelopes e finalmente deixá-las sobre a escrivaninha, prontas e lacradas, algumas bem gordinhas de papéis dobrados, esperando a hora de irem embora nos correio.  

Através delas tive amigos reais mas também imaginários, de certo modo, pois me pegava imaginando como eram e como viviam. E nem foram muitos. Talvez uns cinco ou seis, ao total.

No entanto um deles que mais durou e que me marcou foi Vanderlei Carlos Santana, que morava em Franca, no interior de Sampa, pouco mais velho que eu e leitor voraz. Ele me respondia regularmente e muito me motivou a produzir e conhecer outros autores e obras.

Nunca nos falamos por telefone e sequer nos vimos por fotos, mas trocamos uma dezena de cartas, durante aproximadamente um ano. E, sem me lembrar do motivo, um dia paramos.  

Mas obrigado, querido e velho amigo, por ter me procurado de novo. E também pela bela e inesperada homenagem que transcrevo abaixo, e que me motivou a fazer esse texto. 

Pessoas como você fizeram e sempre farão diferença na minha vida.

E se comemoramos agora a facilidade da comunicação graças à rede, lamentemo-nos pelas cartas que recebemos atualmente dos correios, contendo só contas a pagar!

Desde pequeno eu gostava de ouvir a minha mãe contar histórias, à noite, após o jantar. E uma que eu sabia de cor e salteado, mas que pedia sempre para ela, era a dos 3 porquinhos. Eu gostava de sentir aquele frio na barriga, mesmo sabendo que os porquinhos estavam protegidos na casa de tijolos. Então fui crescendo e tomando gosto pela leitura. Devorei os livros da Aghata Christie e fiquei deslumbrado, me imaginando um dos hóspedes da pensão onde ocorreu um assassinato em "A Ratoeira". Mas também fiz umas 200 viagens no famoso trem de "Assassinato no Expresso do Oriente". O tempo passava e eu na adolescência, um moleque travado, com uma dificuldade enorme pra fazer amigos, resolvi desenvolver um lado escritor. Peguei caderno, caneta e logo escrevi a minha primeira história. Fiquei empolgado e escrevia mais e mais. 
Um dia uma professora me orientou a manter contacto com pessoas ligadas à literatura, para observar, aprender. Então coloquei um anúncio numa revista, procurando amizade com jovens de todo o Brasil,que tivessem gosto por livros. Assim que a revista chegou às bancas, "choveram cartas" na minha casa. Empolgado, li todas, mas selecionei 50 e passei a me corresponder mensalmente com esses jovens. Um ano depois desse monte de amigos, sobraram uns 3, duas moças, sendo uma do Rio Grande do Sul e a outra de Igarapava. E um amigo do Paraná. Ficou assim mais fácil. 
Eu pedia a opinião a esses jovens sobre os textos que fazia, e eles me mandavam sugestões, correções. Mais tarde, cada jovem resolveu seguir seu caminho. E as correspondências pararam de acontecer. Muitos anos depois, já na era da Internet, eu tinha desistido do sonho de ser um escritor, mas continuava devorando os livros. Certa noite, assistindo ao Jornal Nacional, vi uma matéria que me chamou a atenção, sobre um evento para comemorar o lançamento da biografia da atriz Gloria Pires. Não é que o escritor entrevistado tinha o nome do meu amigo da adolescência? Ainda fiquei em dúvida, mas aquele nome não era tão comum assim: Fábio Fabrício Fabretti. 
Resolvi pesquisar na internet, e era o meu amigo do passado. Ele havia conseguido realizar o seu sonho de se tornar um escritor profissional. Entramos novamente em contacto, através do Facebook, e retornamos a amizade com interesses literários, mas agora com uma relação bem forte e adulta. Eu enterrei os meus sonhos de ser um "narrador de histórias", mas desde aqueles tempos o meu amigo me mostrou que, se temos um sonho, um objetivo de vida, devemos ir atrás, lutar por ele. Nada cai do céu. Talvez aquele não fosse o meu sonho. Era só uma maneira de mostrar que eu tinha algo de bom para as pessoas gostarem de mim. Mas ele foi à luta, sofreu, mas venceu naquilo que sabia poder fazer de melhor. Então, acho que os meus melhores conselhos daquela época foram de um "jovenzinho adulto". 
Muito obrigado pela amizade, senhor FFF. 
Nota: as duas moças amigas naquela época, hoje são senhoras casadas e mães, que por vários motivos resolvi não pedir uma aproximação. Não sei se elas têm a literatura por profissão. Mas com certeza ajudaram muito aquele jovem travado a passar a fase da adolescência bem mais seguro de si, pois os livros fazem milagres. E obrigado aos três porquinhos que me esconderam do Lobo Mau, na sua casinha de tijolos. Aliás, por me ensinarem a enfrentá-lo. Sinceramente.
- Vanderlei Carlos Santana -