quinta-feira, 26 de junho de 2014

Neusinha Brizola por Celêdian Assis




A Interface Olympus apresenta em uma primorosa edição, a obra Neusinha Brizola sem Mintchura, biografia de Neusinha Brizola, autorizada pelos seus filhos, Layla e Paulo César, idealizada a partir do encontro dos autores Fábio Fabrício Fabretti e Lucas Nobre com a mesma, na década de 80 e segundo Fábio: “Foi nosso grande encontro, naquela tarde de sol e de Neusinha...”. 

Uma história de uma vida curta (56 anos apenas), mas muito conturbada, recheada com o espírito livre e contestador da polêmica e irreverente Neusinha, que não se acanhava de dizer: “Eu adoro um escândalo e daí?”

Alguns fatos eram de conhecimento público, alardeados pela mídia da época, mas não como são revelados nessa obra, com riqueza de detalhes reais e inéditos, em surpreendente relato íntimo, das experiências vividas por ela nos bastidores da política, em sua história pessoal de amores e dissabores. 

São depoimentos estarrecedores, inusitados, recolhidos pelos autores, diretamente de Neusinha, que lhes revelou, natural e minuciosamente, as mais “Escandalosas confissões da mais polêmica filha de um governador, que chocaram o Brasil”, quem desde a infância já se anunciava travessa, “Eu me esbaldava nas viagens que fazíamos pelo Brasil, em campanhas. 

Eram como férias. Ainda guardo na memória a imagem do meu pai alto e sério, gesticulando imperialmente no palanque. E minha mãe, esguia e sorridente, acompanhando-o. 

Eu, abobalhada, cumpria o meu papel da filha fofinha, sem sonhar que me transformaria um dia no terror da família!”. Em outra passagem quando estudava em um internato na Inglaterra ela conta que: “Na escola, criança, eu levantava a saia na frente dos meninos, para mostrar que era diferente deles. Também fazia isso diante das professoras, para ver a cara de horror delas.” 

Em certo momento de sua vida, já madura, reconhece que, “Não penso no futuro, mas também não sofro pelo passado, só conto com o presente, sem arrependimentos. Tudo o que vivi me tornou o que sou hoje.”

A obra conta ainda com fotos autênticas e uma gama de depoimentos de familiares, amigos, muitos artistas, políticos, entre outros que conviveram com ela E que revelam uma Neusinha desconhecida de muitos, uma personalidade única e controversa pela aparente rebeldia. 

Sobre o seu envolvimento com drogas, iniciado aos 14 anos de idade, confidenciou ao autor naquele que foi o último encontro entre eles: “Queria que esse livro fosse um alerta sobre o que as drogas podem fazer. E brincou: Mas ninguém está preocupado com o que uma velha tem a dizer, não é?”

Suas aventuras durante o exílio da família no Uruguai “Nossa fuga para o exílio foi uma metamorfose que deixou marcas e traumas. Entretanto, estivemos mais unidos do que nunca. Se o nosso país não nos queria, o exílio uniu ainda mais nossa família.”

A prisão aos 15 anos de idade, entre outras loucuras, além de um ensaio para a Revista Playboy, cuja publicação foi suspensa por Brizola, o seu casamento em um terminal rodoviário e celebrado por Paulo Coelho, a carreira de cantora e sucesso com sua música Mintchura, entre outras passagens, aguçam a curiosidade e impressionam o leitor por sua intensa trajetória, seja no contexto pessoal, seja no aspecto cultural, ou da história contemporânea do Brasil.

Neusa Maria Goulart Brizola, comportava em seu nome e por si, um elo de sua própria história, com aquela vivenciada em cenários e momentos cruciais da história do país a partir da década de 50, com inúmeras referências ao seu pai: “Meu pai (...) filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro - PTB, onde revelou sua afinidade pela luta social. Casou-se, lá pelos anos 50, com a irmã do futuro presidente João Goulart, meu amado tio Jango. E foi aí que tudo começou.”  

“Meu pai é a própria história viva deste país e outros da América Latina, que fizeram parte de sua trajetória, como tio Getúlio Vargas, tio Jango, Fidel, Allende, Marechal Henrique Teixeira Lott, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, Juan Domingo Perón, Che Guevara e até Frida Kahlo.” 

Neusinha se referia ao pai, Leonel Brizola, com muita admiração, mesmo que tenha provocado inúmeras confusões, que muitas vezes acabavam por denegrir a sua imagem de político: “Vivemos um passado sofrido, que nos politizou e nos fez acompanhar todos os seus passos. Ele mantinha o jogo aberto conosco e nos deixou exemplos maravilhosos.” 

E para honrar o seu nome, após a sua morte, enveredou-se na política, candidatando-se à deputada e sofrendo por isso grande decepção, principalmente com o partido que seu pai fundara, ao que ela depois, já aliviada pelo seu fracasso nas urnas, dizia: “ Nunca quis ser o ópio dos burgueses. Preferiria ser a champanhe do povo.”

Por fim, a doença que a consumia, valendo-lhe amnésias temporárias, o carinho e atenção dos filhos e netos, a fez refletir sobre a sua trajetória de vida desregrada, “A questão é que precisei maltratar o meu corpo o suficiente para chegar à alguma lucidez e aprendizagem. Eu escolhi todos os meus caminhos e os trilhei até o fim. Se pago o preço por isso hoje, é inevitável.” 

E nada melhor para dizer do que a leitura da biografia de Neusinha pode provocar em seus leitores, do que as próprias palavras dela quando já estava próxima a sua morte: “Então vou morrer contrariando a vida. E mesmo depois de partir, vou continuar dando trabalho e causar meu último escândalo, deixando um livro que vai falar e ficar por mim, sem mintchura!”

(Texto de Celêdian Assis de Sousa)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Por todos os natais


Sempre que as pessoas comemoram o Natal, eu comemoro minha mudança ao Rio de Janeiro. Aconteceu em 25 de dezembro de 1993.

Foi no mesmo ano dchacina na Candelária, da transição da URV como nossa moeda de temporária e dos fuscas recriados por Itamar Franco, nosso único presidente que não tinha uma primeira-dama e sucessor de Collor após o impeachment. Foi também quando Madonna e Michael Jackson fizeram shows pela primeira vez no Brasil.


E foi no mesmo dia do natal. Uma data simbólica para o cristianismo, mas que sequer está escrito na bíblia, criado pelo homem, como as igrejas.


No ano passado, passei a noite de natal sozinho em casa, como vem sendo nos últimos tempos, mas completei redondinhos vinte anos de Rio. 

Ao chegar aqui, tudo o que eu carregava comigo era um bilhete de viagem para um lugar desconhecido e uma mala cheia de vontade de ficar longe de tudo e todos que me faziam mal. E consegui. O mal ficou preso ao passado e a si mesmo.


Mas também trazia juventude, anarquismo, aventura, romance, sonhos e solidão. 


Nesses vinte anos morando aqui, ganhei asas e voei sobre terras que nem imaginava existir. Conheci pessoas que me ensinaram a sentir saudade, e outras que me trouxeram o alívio da distância. 


Durante esse tempo, muitos sonhos também nasceram. Alguns se realizaram, aos pouquinhos ou de uma só vez, deixando aquele sentimento de paz com você mesmo. Outros se perderam no caminho, talvez porque não valeriam mesmo a pena. 


Nos vinte anos em que vivo nessa cidade, não sou mais o mesmo: mais feliz, mais realizado, mais dono de mim. Só que também mais velho, mais triste e nem tanto senhor de mim. 


Então, quando chega essa época cristã, vejo as pessoas fazendo valer seus lados de boazinhas, retribuindo cartões, abraços e palavras, trocando presentes e se empanturrando nas mesas fartas.

Eu apenas olho para os lados e vejo quem ainda está comigo, apesar de tudo. Olho para trás e vejo o que conquistei e quem ficou. Mas, principalmente, olho para a frente, tentando saber se ainda falta muito ou pouco para chegar lá. 


Vinte anos depois, talvez eu continue sem algumas coisas que não tinha, desde o começo, mas com certeza conquistei o que poucos tiveram ou terão a chance. 


E isso para mim que é o verdadeiro espírito natalino. 


Um feliz natal todos os dias para todos.



Vida que segue



Assim como Simone Campos que há algum tempo estreou na literatura aos 17 anos, com o livro 'No Shopping', um rapaz chamado Vitor Marques, da mesma idade, também estudante e de classe média, escreveu seu primeiro e único livro: 'Maltratado pela agressão e vitorioso pela superação'.

Se Simone havia ganhado notoriedade com seu precoce e revelador romance, Vitor Marques fez uma autobiografia comovente, mas que poucos têm conhecimento, infelizmente.

Ao contrário da trama ficcional de Simone, que levou um ano para ser escrito, abordando estilo de vida capitalista e o cotidiano dos adolescentes, Vitor, entretanto, fez suas tristes páginas pouco antes de vencer a morte, recém-saído de um leito hospitalar e ainda se recuperando dos graves ferimentos.

Mas o que levaria um garoto, descobrindo a homossexualidade, a escrever um livro?

Ele também sonhava com romances, gostava de viver aventuras, imaginava pornografias e ria das comédias, como todo garoto da sua idade. No entanto foi uma tragédia que mudou e  marcou o seu destino.

Num fim de tarde de carnaval, Vitor saiu de casa, no seu bairro da Tijuca, para procurar uma academia. Há algumas quadras da sua casa, andando pela rua, foi severo e gratuitamente espancando por um grupo de rapazes, sofrendo afundamento e traumatismo craniano, hemorragia interna e externa e quebrado a clavícula.

Mesmo bastante ferido, Vitor conseguiu chegar em casa e pedir socorro,  antes de entrar num coma profundo e permanecer meses internado, entre a vida e a morte. 

O carinho dos familiares e amigos, assim como a sua vontade de viver foram determinantes para superar a dor, os traumas e as sequelas. E lhe trouxeram a decisão de relatar num depoimento franco e direto toda violência sofrida, revelando críticas indignadas e imagens que ilustram sua lamentável e injustificável condição.

Como ele mesmo diz: 'Esse livro aborda meu grito de socorro, minhas opiniões de tudo que passei e do que muitos enfrentam, mas uns resistem e outros não. Aqui está meu passo de contribuição para a formação de uma Sociedade verdadeiramente desenvolvida.'

Apesar de tudo, Vítor não se coloca como uma vítima. E nem se sente assim. Ele é mais um cidadão desrespeitado e injustiçado com a sua tortura, que representa a ignorância e os maus tratos de um país assolado por poderosos que visam seu próprio interesse. 

Seu livro serve como uma bandeira levantada contra a eterna luta pela ignorância e descaso das minorias, dos direitos humanos - que tanto e hipocritamente se fala - e do real sentido e respeito pela vida, principalmente dos excluídos.

Se todos tivesse a coragem denunciadora e sincera de Vitor, talvez o mundo estivesse menos pior.

Eu o conheci pessoalmente e posso afirmar que ele é muito mais e maior do que isso.

Não só sobreviveu mais humano e forte, deixando um registro daquele cada vez mais distante - porém real e doloroso - passado, mas continua escrevendo as páginas do seu dia a dia, que contarão o futuro da sua verdadeira e brilhante vida.





sábado, 21 de junho de 2014

Sinéad O'Connor





Era início de 1990. Eu tinha 16 anos. 

Meus pais acharam uma solução. Escolheram um internato. Colégio Adventista. Em Anápolis. Cidadezinha do planalto central que fica entre Goiânia e Brasília. 

Eu morava em Maringá, no Paraná. Lugares bem distantes. Mas ainda é assim que algumas famílias tentam se livrar dos filhos indesejados.

Fui escoltado por José Fabretti na viagem que durou praticamente dois dias, rodando de ônibus do sul ao centro oeste, levando comigo duas malas gigantes e bem gordas. Uma com todas as minhas roupas e outra cheia de livros. Porque o plano deles era não me terem de volta tão cedo. E o meu nem era voltar mais. 

Eles queriam se livrar do problema. E o problema em questão já estava comemorando ser livre eles.  

Há um tempo, quando eu tinha completado 10 anos, minha mãe me perguntou o que queria ganhar de aniversário. E respondi todo feliz que queria morar num orfanato. Levei um tapa na cara. Foi inadmissível para ela. Mas era sonhador para mim. 

O pior é que não estava só influenciado por um filme que adorava, sobre uma órfã chamada Elizabeth, que vivia escrevendo diários e cartas para os pais que não existiam. Eu desde cedo realmente preferia não ser filho deles.


O internato, ao menos na época, era um oásis ilusório no deserto, situado numa estrada no meio do nada, na rota de Planaltina, com uma construção sem graça nenhuma e bem diferente do bucólico orfanato da Elizabeth. 

Logo que chegamos vi uma carroceria trazendo alunos sujos de terra e sem camisa. Porque os internos que não eram pagantes estudavam até certo período e trabalhavam na lavoura. Os pagantes estudavam e rezavam com mais mordomias.

O regimento do colégio era vegetariano e portanto comiam o que plantavam. Ou só plantavam o que comiam. Nunca sobreviveria sem minhas proteínas sangrentas.

Levaram-me para conhecer a instalação que se dividia em alas femininas e masculinas, contendo quartos que pareciam celas. As beliches de alvenaria, onde se dormia sobre colchões magros e sem lençóis. Os armários não tinham chaves e as paredes tinham aquelas mesmas manchas enigmáticas dos motéis. 

Usavam um banheiro comunitário que não possuía privacidade nenhuma e com vazamentos que deixavam pequenos lagos e córregos no chão de ladrilhos. E se não me engano nem tinha água quente.

Se fosse para viver sob aquelas condições, pensei, talvez valesse mais a pena servir o exército em breve, o que ao menos me daria alguma dignidade civil.

Falei, pedi e supliquei ao meu pai que não me deixasse lá. Mas ele respondeu que havia gastado muito com aquilo e que seria bom pra mim. E me deixou.

Naquela mesma noite fiz amizade com outro 'estudante-prisioneiro' que também havia acabado de chegar e que se achava tão injuriado quanto. E tramamos uma fuga. Ele sabia de algumas falhas na segurança, como as cercas de arame farpado não serem controladas - quase ninguém usava câmeras - e porque estávamos no meio de uma rodovia, sem muitas opções de se esconder. 

Mesmo assim lá fomos, jovens foragidos, arrastando as malas e mergulhando no matagal, noite adentro, depois que todas as luzes do prédio se apagaram. 

Jogamos nossas bagagens do outro lado da cerca e um ajudou o outro a atravessá-la. Foi aí que fiz um corte no dedo e cuja cicatriz carrego até hoje. O sangue se esvaía sem parar e inutilizava uma das minhas mãos, o que me obrigou a abandonar uma das malas. Não tive dúvidas: deixe a das roupas e levei a dos livros, mesmo sendo mais pesada. Teria mais serventia para mim.

Estávamos sozinhos naquele breu iluminado pelas pelas rajadas dos altos faróis dos caminhões, que passavam em disparada, e o silêncio quebrado pelos seus motores velozes, que poderiam esmagar com suas rodas qualquer ser noturno que atravessasse o caminho. 

Eu rezava para não sentirem a nossa falta na 'instituição penal-estudantil' e nos 'capturarem'. O parceiro parecia mais confiante. Então soube que ele era um fugitivo veterano por lá.

O destino do meu companheiro era um. O meu podia ser qualquer um. Ele voltaria para o seu lar. Eu poderia escolher para aonde quisesse ir, já que estava a milhares de quilômetros de casa.

Depois que meu comparsa partiu na boleia de uma jamanta que seguia para Brasília, permaneci mais um tempo até que um pequeno carro rural me deu carona para Goiânia. Menti que era um estudante de férias.

Fiquei na rodoviária, minha única referência para quem não tinha destino. Afinal é lá que as pessoas vão ou voltam de algum lugar. 

Devido a menoridade não podia fazer muita coisa, nem ir muito longe, então resolvi ligar para casa e comunicar o meus pais, avisando que nem adiantavam acionar o colégio, porque eu fugiria de novo. 

Nos dois dias em que fiquei esperando meu pai me buscar, dormi entre os bancos de espera dos embarques. E lia muito para esquecer a fome. Por sorte tinha um bebedouro por perto. E consegui manter meu pouco dinheiro para alguma emergência, caso a situação piorasse.

Foi lá que fumei meu primeiro cigarro, sentindo-me adulto, e que tomei umas das minhas primeiras latinhas de cerveja.

Também foi lá, sentado na fileira de viajantes que iam e vinham, que algo me chamou a atenção na televisão pendurada bem diante de mim. Era domingo à noite e passava o Fantástico. 

Estavam anunciando um clip - naquela época ainda faziam isso - de uma nova cantora que estremecia os padrões políticos e sociais. Seu nome, Sinéad O'Connor, era de uma pronúncia esquisita. Irlandesa, revoltada, talentosa. 

E lá assisti o vídeo de 'Nothing campares to you', seu hit que estourava após ela ter regravado do Prince, quando namoraram.

Ela me deixou mudo. Pelo canto com uma doçura amarga. Pela voz. Pela letra. Pela expressão. Pela beleza. Por tudo. Como se tivesse conseguido me transcrever - ou me cantar - através da tela daquele televisor público.





Sinéad esteve ao meu lado até meu pai aparecer e me levar de volta para casa. E desistiram de se livrar de mim, pelo menos através daquele recurso. 

Com o tempo fiquei ainda mais seu fã, colecionando tudo sobre ela, com recortes das revistas que eu comprava ou roubava nas bancas. Até raspei a cabeça por sua causa.

Sinéad se tornou um mito da transição musical e comportamental entre os anos 80 para os 90, rompendo com a tradição estética da beleza, hipnotizando com seu canto e questionando em suas letras os sentidos do amor, das pessoas e da vida. 

Eu e Sinéad fomos tomando nossos rumos. Mas foi dela o primeiro cd que eu comprei quando ganhei meu primeiro salário, sem nem ter aparelho de som para ouvi-la. Era a menina que sofreu maus tratos em casa e com a pobreza e guerra fria em seu país, que cedo ganhou o mundo, onde foi até mensangeira de recados antes de cantar, quando teve uma ascensão meteórica, mas que ao rasgar a foto do Papa num protesto religioso viu sua carreira desabafar. 

A mulher que casou, teve filhos e se separou. Depois virou freira e pediu perdão ao Papa, mas se indignou com a limitação da ação feminina na igreja católica. Então assumiu-se lésbica. Engordou e emagreceu, quase perdeu a voz por causa da depressão e enfrentou problemas com drogas. 

E que agora retorna, linda, amadurecida, esbelta e eternamente musa. 




Em off: Fiquei eufórico quando o amigo e terapeuta Tito Gomes me contou que a conheceu em Londres e que a ajudou em sua recuperação.

Eu também tive minhas reviravoltas e revoltas, mas confesso que, toda vez que a escuto, é como se voltasse a ser aquele menino com o rosto cheio de espinhas, perdido numa rodoviária desconhecida, sentado num banco solitário, com uma pilha de livros na mala, espantado pela liberdade e pensando para onde ir. 

E acho que aprendi a gostar de mim assim.


  


Novo disco e novo visual.




terça-feira, 17 de junho de 2014

Tia Vera




No meio da madrugada chuvosa e insone, no final do ano passado, parei de escrever e resolvi abrir um email pouco usual.

Não é que uma surpresa me aguardava?!


Entre tantas mensagens impessoais novas e antigas, lá estava uma, esperando-me pacientemente, desde o meado do ano, escrita por uma pessoa que minha mente não fez o menor esforço para se recordar.

Alguém que convivi por um tempo na infância, mas que me acompanhou o resto da vida, por ter deixado uma das melhores heranças em mim. E a quem devo muito quem sou hoje. Uma pessoa que orientou carinhosamente os meus primeiros passos para o mundo das letras. 

Uma professora domiciliar, mas que na verdade era um tipo de fada, que chamava de Tia Vera.


Querido Fabinho, não sei se você ainda se lembra de mim. Você faz parte de minha história, porque sempre te amei muito, pedi a Deus que meu filho se parecesse  com você porque sempre admirei seu jeito meigo, carinhoso e querido de ser. Fabinho, você participou  da preparação para a chegada do Júlio César e depois do nascimento, ele ficava conosco sentado no bebê conforto enquanto fazíamos nossas aulas. Lembra-se quando estudávamos nas apostilas do Positivo?
Fabinho, fiquei extremamente orgulhosa de você ao ver a publicação do livro da Glória Pires, tendo-o como autor. A delicadeza, o bom gosto, o capricho, a sutilidade e outros infinitos adjetivos seriam insuficientes para qualificar seu desempenho. Sendo você a pessoa que é não foi surpresa elaborar uma obra deste gabarito.
Passei por um período difícil, mas agora estou bem e comecei me aventurar no mundo virtual.
E para você que mora em meu coração: Meu carinho, minhas saudades, meu desejo de sucesso e minha prece.
Tia Vera.

Eu já sabia ler e escrever quando nos conhecemos, por volta dos meus sete anos, mas por culpa da minha deficiência em ciências exatas, uma das professoras da minha escola recomendou para minha mãe que procurasse uma ajuda particular. Ou, como dizem aqui no Rio, uma explicadora.

Então lá ia eu, quase todos os dias, na parte da manhã, antes do horário escolar, para a casa da Tia Vera, há algumas quadras da minha, carregando minha mochila com as lições de casa.  

O trajeto em si já era uma aventura, pedalando minha Caloi Cross vermelha pelas ruas arborizadas do bairro Morangueira, em Maringá. Um trajeto simples mas que na minha cabeça virava um rali.

No seu quintal tinha um cachorro gigante da raça Rough Collie, que eu morria de medo e chamava de Lassie, por causa do seriado. E ela me atendia na sala de estudo, onde apareciam objetos mágicos dos seus armários e gavetas. Sonhava morar ali.


Quando sua ajudante doméstica a interrompia, perguntando-lhe o que serviria para o almoço, ela abria um freezer imenso, daqueles antigos, que pareciam caber uma pessoa congelada e destrinçada dentro. E procurava entre os pedaços frios de pernis, aves, costelas e outra miudezas e grandezas. Ficava fascinado com aquilo, como se ela guardasse um universo gélido por lá. 


Ao final eu regressava para casa, com os deveres devidamente feitos e pronto para almoçar, vestir o uniforme e ir estudar novamente. 

Teve até uma vez que uma professora pediu para desenharmos um mapa do Brasil à mão. E tia Vera, vendo meu desinteresse, caprichou para mim. 


Na sala mostrei à professora que me olhou com uma desconfiança suprema, acusando-me de não ter feito aquilo, alegando em alto tom que por isso não aceitaria. A turma toda me encarava com aquele deboche comum e cruel das crianças.


A imperdoável professora insistia para eu revelar quem tinha feito o desenho. Claro que não contei. Jamais quebraria o código de ética e amizade por Tia Vera. E acabei de castigo o resto da aula.


Enquanto minha mãe fazia da minha vida um inferno, o paraíso que conheci foi através daquela mulher, que posso declarar ter sido uma mãe do coração e dos cadernos.


Nossa separação se deu porque Tia Vera, que sempre sonhou ter filhos, havia finalmente engravidado e o bebê passava a requisitiá-la mais e mais. Logo também nos mudaríamos para outra residência, num local mais afastado do bairro. 


Convivi com outras ao longo da vida estudantil, devido ao meu descaso pela matemática, mas nenhuma me tratou de forma tão especial.


Agora, trinta anos depois, Tia Vera reapareceu, graças às redes sociais. 


E só hoje entendo o que tudo aquilo me significaria. O quanto Tia Vera faria parte de mim. Jamais a esqueci, principalmente pelos livros que ela me deixava levar para ler. E pelas palavras que compartilhava quando eu redigia.


Hoje Tia Vera se tornou uma história. Uma história imortal. E que é só minha. E dela também.


Quem disse que não há fadas-madrinhas?

Meu pequeno menino, foi, sem sombras de dúvidas, o meu aluno preferido. Eu sempre fui apaixonada por você. Esperava-o todos os dias cumprindo um ritual todo envolvido pela afetividade e era a melhor coisa que eu fazia na vida: ajudá-lo fazer aquelas tarefas enfadonhas comprimidas em uma apostila, pois sempre tive certeza que sua capacidade, criatividade e inteligência iam muito além do que aquele conteúdo limitadinho. Sempre pedi a Deus para ter um filho parecido com você, gostando de contestar aquilo que achava não estar correto e apaixonado pelo conhecimento. Tenho um orgulho enorme de você, meu filho amado do coração. Amor de mãe é incondicional, eterno e verdadeiro. Você entrou em minha vida para que eu pudesse me tornar uma pessoa melhor, sentir a felicidade de "ser mãe postiça" e ficar troncha de orgulho a cada sucesso seu. E te amo como uma mãe!
Tia Vera.







sexta-feira, 13 de junho de 2014

A vozinha



Sobre minha mania de questionar e avaliar as relações humanas, costumo brincar com meus amigos que eles podem ser inspiradores para escrever. E eficientes antidepressivos. 

Algumas experiências também conseguem modificar o nosso olhar sobre certas coisas, quando nos permitimos. 

Desde que conheço minha amiga Michele Vacchiano, sua avó, Maria Cardoso Rebelatto, sofria de um mal degenerativo chamado Alzheimer, que lentamente leva embora a memória de uma pessoa. Um terror que afeta milhares de idosos e cuja cura é desconhecida, incluindo o triste processo degenerativo. 

O doente vai simplesmente se esquecendo de quem são as pessoas ao seu redor. O cônjuge, os filhos, os netos, os amigos. Todos se tornam meros estranhos. E depois acaba se esquecendo de quem simplesmente é.

No caso de Mariazinha, ela havia chegado a um lamentável estágio avançado, que a deixou infantilizada, esboçando reações e pensamentos de uma criança tardia. Chora. Balbucia. Chamava pela mãe que, na verdade, é sua filha. Recentemente havia sofrido uma queda e quebrou o fêmur, sem poder mais andar, condenada a dias e noites sobre uma cama, sofisticadamente adaptada para ela, sob cuidados especiais. 

Contam que a avó foi uma dama da sociedade curitibana e carioca. Foi jovem e bonita. Sonhava se casar de noiva e assim o fez. Quis ser mãe. E teve três filhos. Virou costureira. E fabricava lindos vestidos para ela e sua filha.  Com o tempo passou a distribuir para as melhores butiques do sul. Era uma estilista. Roupas que hoje permanecem sufocadas no guarda-roupa, respirando um passado que não existe mais. Criou os filhos, foi boa esposa, fez carreira na moda, teve orgulho dos netos. Agora não lhe resta mais nada.



Mas no decorrer de sua enfermidade aconteceram situações inevitavelmente engraçadas que chegaram a tirar a seriedade da coisa, como no dia em que ela tentou acender um cigarro nas luzinhas que piscavam do pinheiro de natal, e que desabou em cima dela no meio da sala. Ou quando inventou de aquecer o café e colocou uma xícara sobre o fogão aceso, causando uma pequena explosão de porcelana na cozinha.

Suas lembranças foram partindo aos poucos, levando o seu nome, sua história, sua gente. Apenas as recordações mais antigas restaram por algum tempo, como seu casamento com o grande amor, cenas antigas com os filhos e outros episódios distantes, que ela contava como se tivessem sido ontem. Mas que agora nem isso sobrou.

Então, nos dias em que passava com minha amiga, tentava ajudá-la de alguma forma com aquela dor. E nas vezes em que ficava sozinho com sua vó, de hora em hora espionava o seu sono velado, certificando-me de que ainda respirava. Até fazia aviãozinho para motivá-la a engolir as colheradas de sopa.

No entanto, as conversas da avó é que me surpreendiam. Ela despertava papeando com alguém que ninguém mais via, só ela. E confabulava assuntos que somente ela devia entender. Parecia girar numa órbita exclusivamente dela.

Observando seu diálogo com o vazio, entre gestos curtos e caretas delicadas, começava a imaginar que espécie de mundo estaria ela vivendo. Com quem será que tanto falava? Fantasmas que um dia foram parte de sua vida? Seres imaginários que povoavamm seu quarto? E sobre o quê?

Acabava pensando que a vozinha devia discutir consigo mesma, fazendo prováveis acertos com seu passado, seja lá qual fragmento for. Ou perambulava por alguma realidade paralela, na qual não pertencemos, ignorando-nos como se não fossemos dignos de estar lá.

Hoje prefiro acreditar que ela vivia um eterno sonho, dormindo ou acordada, por todos os dias que lhe restavam, e que para ela devia ser mais real do que a nossa duvidosa realidade.



quinta-feira, 12 de junho de 2014

Jussara Calmon, muito prazer


Capa do livro 'Jussara Calmon, muito prazer'.

Uma biografia caliente que não vale 
só pela história de vida da atriz,
mas pelos bastidores do cinema 
e televisão brasileiros. 
- Larissa Saram, Revista Marie Claire -

Fábio Fabrício Fabretti recuperou em seu livro
uma personagem fascinante.
- Mauro Ventura, Jornal O Globo -


A atriz Jussara Calmon com seu biógrafo Fábio Fabrício Fabretti.
/ Foto de divulgação /

Há exatamente três anos um editor me procurou para fazer a biografia de Jussara Calmon, uma das principais atrizes da Boca do Lixo, que foi uma central de filmes em São Paulo, responsável pelos filmes brasileiros nas décadas passadas, com Vera Fisher, Lucélia Santos e outras, inclusive Xuxa.

Entre eles se destaca 'Coisas eróticas', primeiro longa do gênero popular que fez parte do cinema brasileiro, também protagonizado por Jussara.

Tanto o filme quanto o reduto cinematográfico completariam 30 anos de história em nossas telas, servindo de foco para o documentário 'A primeira vez do cinema nacional, dos jovens cineastas e amigos Denise Godinho e Hugo Moura.

 Topei, claro. Afinal como recusar um trabalho tão instigante? E como não se encantar pela simplicidade e sinceridade de Jussara Calmon? 

Atriz, cantora e dançarina, ela abandonou o país e a carreira há pouco mais de uma década para viver na Europa, onde passou os últimos anos se dedicando ao marido produtor e pescador, além de lecionar dança e teatro, divulgando nossa cultura e ritmo brasileiro pela Noruega. 

Jussara mora numa ilhota rodeada pela água salgada onde pescam baleias (com o consentimento do governo) e bacalhaus, cercada por montanhas norueguesas, cheia de vento e rochas que compõem o cenário isolado, frio e povoado por menos de 200 habitantes, com uma escola que está fechada por falta de crianças e uma igreja que avista da sua janela. 



Ela pretendia voltar à ativa e a fazer o seu livro. Eu havia recém lançado o livro da Glória Pires, que repercutiu tão lindamente como ela, e estava escrevendo o da Neusinha Brizola, que vasculhava os submundos humanos. 

Abri uma brecha entre meus trabalhos e em cerca de 6 meses produzi a sua biografia, com a colaboração da querida Sonia Barbosa. Jussara não é só disciplinada na carreira, mas também muito organizada na vida. E tinha guardado todo o material que precisei para a pesquisa. 

Lançamos Jussara Calmon, muito prazer no Brasil e Noruega, desde o Teatro Augusta, Bienal embaixada internacional, chegando até a Feira Internacional de Frankfurt.

Tivemos capas em jornais assinados por Mauro Ventura, do O Globo, e por Larissa Saram, da Revista Marie Clair, que inseriu o livro na lista dos principais best-sellers internacionais, na categoria dos mais libertinos e brasileiríssimos, chamada Os livros mais assanhadinhos para se inspirar e se divertir, mostrando que os brasileiros são famosos no mundo pela espontaneidade e sensualidade à flor da pele, além de se orgulharem do sex appeal.

O livro apresentado na Feira Internacional de Frankfurt.
/ Foto de divulgação /

Sua história narra a trajetória de uma artista que passou fome, sofreu maus tratos e viveu na pobreza durante a infância, no Espírito Santo, até vir para o Rio se se tornar a garota propaganda preferida pela mídia, no anos 80, disputada pelas capas tanto das revistas publicitária como as eróticas, além de jornais como O Pasquim.

Descoberta pelos caça-talentos da Boca do Lixo, foi levada para assinar um contrato às escuras para um filme que nem ela ou os produtores sabiam bem o que seria. E acabou protagonizando o primeiro filme erótico brasileiro, Coisas eróticas, de Rafaello Rossi, inspirado no pioneiro e picante americano Garganta Profunda, que estourava na época. 

O filme foi um sucesso estrondoso, mesmo com o Brasil perdendo a Copa no ano de 1983 e a perseguição da censura. E ela continuou a brilhar nas telas do cinema, em produções de pornochanchadas e sérias, através de renomados diretores como David Neves, Neville de Almeida, Afrânio Vital, Milton Alencar Jr. e Francisco Cavalcanti.


Mídia internacional.

Também integrou o grupo de show chamado Brasil canta e dança, produzido por Haroldo Costa, junto de Pinah e Vera Verão. E com o regresso do teatro de revista, em meados dos anos 80, destacou-se como uma das principais vedetes a subir nos palcos dos clássicos teatros como o Rival e o João Caetano, ao lado de Colé Sant’Anna, Grande Othelo, Ankito, Nik Nicola e Henriqueta Brieba.

Nos anos 90,  participou de um grupo só de mulheres que cantava forró. Foi nomeada a Rainha das Atrizes. E ocupou o cardo de vice-presidente do Retiro dos Artistas. Incursionau em programas humorísticos e novelas da TV Globo, como Vale tudo, Tieta do Agreste, Despedida de solteiro e o especial A Maldita. 

Sua vida amorosa envolveu histórias inéditas com importantes homens como o ator Robert de Niro, com quem teve um amor de carnaval, Ibrahim Sued, Albino Pinheiro e o dono do Angu do Gomes, entre jogadores, intelectuais, empresários, produtores, diretores e militares. 


Mídia nacional.

Sempre dona de um grande apelo entre jovens e adultos, desde que se tornou uma das pioneiras do cinema nacional, numa época em que a arte brasileira enfrentava a censura e contava com poucos recursos, também chamava a atenção das crianças, mesmo sem nunca ter sido mãe. 

O público mirim já a conhecia pelas peças infantis que produziu e protagonizou no teatro carioca. E agora, coincidentemente ou não, está no elenco de Chiquititas, novo sucesso do SBT após Carrossel, com o papel da diretora escolar, bem similar ao da sua última novela da Globo, 'Sonho meu', quando cuidava de um orfanato. E mais um motivo para retornar frequentemente ao Brasil, além dos seus vínculos com o carnaval, desfilando como destaque todos os anos pela Beija-Flor, hábito que mantém do seu passado glorioso.



E mais: Com a repercussão do livro, ela está negociando com produtores locais e internacionais o convite de transformar a história num filme. 

Não posso deixar de dizer que uma das facetas mais bonitas do nosso trabalho é o interesse de despertar a leitura e instigar a superação motivacional nas pessoas, realizando palestras e doando exemplares para comunidades carentes ou excluídas da sociedade, como a Vila Mimosa, reduto de prostituição no Rio.





Considero-me sortudo pois os livros me apresentam lugares, pessoas e emoções. E Jussara é uma daquelas que entram na sua vida profissionalmente e se tornam mais que amigas.


Lançamento de 'Jussara Clamon, muito prazer' no Rio.


Jussara é a prova de que o artista brasileiro 
nasce com beleza e ascende com dificuldade. 
Mas chega lá! 
- Millôr Fernandes, em memória -